28/07/24

"um dia" / William Basinski / "cem"

"um dia"

um dia
vou encontrar 
amor
onde ele 
nunca mais
me encontre.
como quem procura 
onde se perder
na esperança
de ser encontrado.

um dia 
a angustia dá
um dia
o tempo tira
um dia
sede virá
um dia 
coração conspira

 

"cem"

poemas são ausências.
assombrados por frases segredadas
e peitos esmagados
que transubstanciam 
em resiliência
e esperança.

descalços
caminhando
na dor 
como no chão.

estou 
constantemente 
a gatinhar

não ganho 
para 
tanta tinta.

27/07/24

Questões // Novos Baianos

será um blog suficiente
para um diagnóstico terapêutico?


24/07/24

Luís Filipe Parrado // Fiorella Bini // "corpo" // "ausências" // Mark Dresser

 



"corpo"


o meu corpo

cai

repetidamente

enquanto aguarda 

que termine 

esta estranha percepção 

do que chamam

braços, pés, 

pernas, mãos, 

pele, toque, 

e aprenda a levantar


mas deitados

também aprendemos

tanto





"ausências"

tanto espaço
tanto peixe
tanta rede

tanta água
tanto mar
tanta sede



"bichos do mato" // Guy Klucevsek & Alan Bern

 



22/07/24

Mark Dresser & Jerome Rothenberg // "as pessoas" // Cassavetes // The Clean


"as pessoas"


a falta que me faz
uma barrigada de farturas
numa feira ao centro

uma açorda 
de camarão
recheada de coentro

som de betoneira
no ouvido
a acordar noite dentro

as pessoas são meias parvas
(eu nem gosto assim tanto de farturas) 


"as pessoas - II"

silêncio 
tanto pode ser ausência
como estar cheio de presença

deslumbre não é opção
persistência sim

as pessoas são meias parvas
quem o diz é quem o é
infinito vezes mil
mais um


16/07/24

Acho que não estou lá muito bem...

 "luxo"

parece
por vezes
não sermos daqui
nem tampouco dali.

não pertencermos 
nenhures.

espalhamos 
os nossos pertences
pelo mundo
com um sopro
de vida

comprei luxuriosa
casa e
tranquei porta

deixo
chaves
contigo

na esperança
que recordes:
não pertencer
é opção.


"peso"

falta-me ainda
aprender
o quanto me
estou a perder
na nostalgia
do impossível


"Era uma vez..."

Era uma vez uma realidade
(e antes de prosseguir 
deixem-me esclarecer
e tornar completamente 
evidente:
sim! "uma"!
há mais!
Esta é a que hoje escolhi.)

Essa realidade 
queria ser
acontecimento,
memória,
real.

Mas 
encontrava-se limitada
por um modo 
(limitado,
passe a redundância)
de percepcionar

Assim
quando alguém dizia 
"aproximar"
assumia apenas
a diminuição 
de medida 
entre 
uma e outra 
pele

quando diziam "afastar"
assumia a medida
após a qual 
uma voz,
mesmo que berrada,
se torna inaudível.

quando alguém dizia "maçã"
na sua cabeça de realidade
formulava sempre a mesma imagem

afastado 
cheguei,  
aproximei 
e trinquei.
a realidade só teve tempo
de dizer "ai".

estava
verde.


"comboios?"

há estações
inteiras
que passam
sem nos encontrarem
de bilhete na mão


"intangível" 

procuras
encontram-te 
conheces o jogo
haverão sempre 
secretas mãos 
dispostas a amparar

apesar de ter amigos 
por ela consumidos 
recuso celebrar a solidão 
a uma distância de segurança



"banal"

para o que virá
estamos
o que passou 
passou
que banais nos 
tornamos
que descartável 
estou

---""---


(já matavas saudades minhas de outro modo que não seja vir aqui, não? Tótó!) 


07/07/24

Ann Peebles // "Oração ao Sagrado Coração" // Pascal Comelade

 


"Oração ao Sagrado Coração"


Deus nosso senhor nos salve
e todos os seus santos 
e santas
de sombrias noites sem fim,
lúbricas discotecas 
e do subsequente
oásis fluorescente 
de postos de gasolina 
abertos até madrugada.
Salvem-nos da estrada
depois da hora
em que tempo 
perde significado.
Salvem-nos de todo o pecado.
Pensamentos, actos e omissões,
genuflexão, contrições,
desejos e inações.
Salvem-nos dos aventais manchados,
das lojas abertas vinte e quatro horas,
de roupa de marca 
manchada de sangue,
dos móveis que combinam com a cortina
e dos sofás a condizer.
Bani os empreendedores e paladinos
da competição de volta 
para o tubo de ensaio,
para banco de esperma. 
Ouvem-me santos e santas do meu coração?
Salvem-nos da insónia,
de cruzar estradas apenas nas passadeira, 
de campainhas de escolas,
sinos das fábricas, 
e de tumulares salas de estar 
cobertas com todas 
as suas galáxias 
de poeira.
Salvem-nos de lábios húmidos a beijar,
sutiãs difíceis de desapertar, 
ereções que parecem perdurar,
aromas de pele de enebriar.
Salvem-nos do som de passarinhos
nas casas de banho 
da estações de serviço,
do espelho que suporta
o nosso reflexo manchado e cansado,
da eterna vigília dos meus nervos
e da persistência do amor.
Salvem-nos dos recantos
da cidade
que permanecem por mapear,
de quem, de bom grado se oferece
para os explorar,
e sobretudo da vontade que temos
de os acompanhar.  
Salvem-nos de acordar.
Salvem-nos da fadiga 
do caminho 
certo,
da voz que teima e
de uma cama fria.
Salvem-nos dos contornos 
mudos e imóveis 
de mais um dia sem medida, 
do dia que será, é, foi
apenas mais um dia, salvem-nos.
Ó Santíssimo Imaculado Coração
repleto de sentimentos de misericórdia e ternura,
concedei a graça de conservar até a morte, 
o perfeito equilíbrio de sentimentos, devoção e amor para convosco, 
Mãe e Senhora. 
Misericordioso Coração, 
atendei nossas preces.


06/07/24

"um dia" // Pascal Comelade // "aterrissagem"

 "um dia"


quero ser
o homem
que adentra
por essa manhã
e sacia 
com o orvalho matinal





"aterrissagem / aterragem"

encontramos explicação
se a queda
não regista fracturas ósseas
mas secura de lábios.

o problema 
de quem voa sem asas
não é a aterrissagem.
prende-se 
com a quantidade 
de tempo gasto
na recorrente tarefa
de amar em surdina,
abraçar na ausência
e tentar escrever 
como quem beija.

01/07/24

Fausto Bordalo Dias x2 // "Fotografias"

 

 

"fotografias"

em adulto 
também aprendeu 
o silêncio que transborda

olhares
eternos sorrisos povoam
menos nostalgia 
que esperança

"meu bem"
ad nauseam

sou 
carta escrita 
em gatafunho de criança
carregada de erros.

não abdico
de nenhum