29/07/11

Pizarnik

I
E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é correcto.

II

Mas a ti quero olhar-te, até que o teu rosto se afaste do meu medo como um pássaro da orla afiada da noite.

III

Como uma criança de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente esborratada pela chuva.

IV

Como quando uma flor se abre e revela o coração que não tem.

V

Todos os gestos do meu corpo e da minha voz para fazer de mim a dádiva, o ramo que abandona o vento no umbral.

VI

Cobre a memória da tua cara com a máscara da que serás e assusta a criança que foste.

VII

A noite do casal dispersou-se com a névoa. É a estação das carnes frias.

VIII

E a sede, a minha memória é da sede, eu descendo, no fundo, no poço, eu bebia, lembro-me.

IX

Cair como um animal ferido no lugar que será de revelações.

X

Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Que entre o vento. Tudo fechado e o vento por dentro.

XI

Ao negro sol do silêncio douravam-se as palavras.

XII

Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.

XIII

Todavia se digo sol e lua e estrela refiro-me a coisas que me sucedem. Que queria eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.

XIV

A noite tem a forma de um grito de lobo.

XV

Prazer de se perder na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui em busca de quem sou. Peregrina de mim, fui até àquela que dorme num país ao relento.

XVI

De queda em queda incessante até onde ninguém me aguardou, pois ao olhar quem me aguardava outra coisa não si senão eu própria.

XVII

Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu, embora me referisse à alba luminosa.

XVIII

Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.

XIX

Deslumbramento do dia, pássaros amarelos pela manhã. Uma mão solta as trevas, uma mão arrasta a cabeleira de uma afogada que não pára de olhar-se ao espelho. Regressar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos em guerra, hei-de compreender o que diz a minha voz.



Alejandra Pizarnik, "Extracción de la Piedra de Locura" (1968)

28/07/11


PARA FAZER O RETRATO DE UM PÁSSARO

Pintar primeiro uma gaiola
com uma porta aberta
pintar em seguida
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro
encostar depois a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem dizer uma palavra
sem fazer um gesto...
Às vezes o pássaro vem logo
mas pode também demorar muitos anos
a decidir-se
Não desanimar
esperar
esperar anos, se necessário for
pois a rapidez ou demora da chegada do pássaro
nada tem a ver com a qualidade do quadro
Quando o pássaro chegar
se por acaso chegar
manter um rigoroso silêncio
aguardar que o pássaro entre na gaiola
e quando ele entrar
fechar lentamente a porta com o pincel
em seguida
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar nas penas do pássaro
Pintar depois a árvore
escolhendo o seu mais belo ramo
para o pássaro
pintar também o verde da folhagem e a frescura do vento
os raios de sol
e o clamor dos insectos no calor do Verão
em seguida aguardar que o pássaro se decida a cantar
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se ele cantar é bom sinal
sinal que se pode assinar
Arrancar então com todo o cuidado
uma pena do pássaro
e escrever o nome num canto do quadro.

Jacques Prévert, in "Palavras/Paroles" sextante, 2007
trad. Manuela Torres

24/07/11

"Instrutivas são as existências em que a felicidade se vai e depois regressa; o homem entra constantemente em contacto com o universo. Estas reviravoltas não são raras na vida do jogador, mas podem ser igualmente observadas nos príncipes e nos soldados. Ainda assim, tais curvas num mundo, em que frequentemente apenas um passo em falso chega para causar ruína, permite imaginar a existência de uma inteligência fortemente marcada e rítmica. Do mesmo modo, sente-se nas pontas dos dedos, e, com efeito, tem-se consciência de que mãos finas e bem contornadas são frequentemente um indício de uma natureza feliz. Existe uma ciência do momento favorável; quem quiser ter uma ideia, deve utilizar o compêndio de Casanova."

Ernst Jünger

puta de dor de cabeça...


Era uma vez um surdo completamente surdo, um paralítico completamente paralítico e um calvo completamente calvo. Viviam juntos e de tanto se aborrecerem decidiram partir. A fim de alcançarem o ponto mais distante do mundo puseram-se a caminho a pé, ou seja: o paralítico ia deitado numa maca, porque era tão completamente paralítico que nem sequer se podia sentar, e o calvo e o surdo transportavam a maca. O surdo ia à frente.
A certa altura da viagem foi preciso atravessar uma floresta. Quanto mais os três homens penetravam nela mais o mato era denso e a folhagem cerrada: Por causa disso e do anoitecer, escurecia.
Iam a meio de uma clareira quando o surdo disse: "Poisa a maca." E deixou de andar, o que obrigou o calvo a parar também. O calvo e o surdo puseram a maca no chão.
E o surdo disse assim: "Esta floresta está cheia de assassinos e malandros. Há já um bom bocado que oiço a restolhada deles." O calvo respondeu: "Estou em crer nisso, porque sinto que os cabelos se me estão a pôr em pé." Então o calvo e o surdo desataram a correr, seguindo o trilho que tinham aberto no mato.
O paralítico ficou sozinho na clareira. E ele pensou: "Não gosto de estar nesta floresta. Parece-me que vou mas é fugir daqui."

Nuno Bragança em "Directa"




19/07/11

16/07/11




a verdade como uma nuvem

e promessas como mero papel de embrulho

talvez soubesses, talvez não.

alguém me salvou a vida

diz-se que tudo muda.

(...tudo?)


não se pode prever o dia em que a bala chega.

mas ela repousa silenciosa. fechada a quatro chaves.

única verdade.



para ti, aqui no escuro,


tudo.



15/07/11

já não há cerejas.
tudo está bem.
cumprimentos à família.


08/07/11

07/07/11


Covarde.
(assim, com maiúscula. nome próprio.)
egoísta.
quem? quem? quem? quem? quem? quem? quem? quem? quem?quem?quem?

04/07/11

compreendo quase tudo. não acho justo que se abuse de quem não tem. se o objectivo é o que penso, parabéns!