29/11/24

"Saudade do Burro Branco" // Black Lips

 "Saudade do Burro Branco"


O burro branco já não aparece
e eu sinto a falta 
da sua lentidão 
na poeira seca, 
do som das patas
no chão 
como um aviso.

Fiquei bravo
quando o conheci
ferido
porque logo ali
o amei;
e o que amo
quero proteger
até 
com retroativos.

Ele não sabia o meu nome,
nem dos meus pensamentos
que, como ele, se arrastavam
tentando entender isso de viver
num misto de esperança e receio 
de não saber abrir mão
do trauma. 

O burro branco sabia de fome,
de suar até as vísceras saírem,
e eu, sem rumo,
com a falta do olhar simples
no fim da tarde quente.

Digo-me "teve de ser"
ouço os "é o que é":
uma bebida amarga
que bebo na esperança 
de não sentir a saudade
dessa alma quadrada
que nunca soube o meu nome
mas que sabia que a vida é dura
e que, numa qualquer encruzilhada,
homem e um burro
se  podem entender.

Não está;
e a saudade engole-me novamente,
como se eu fosse ele:
a contar cicatrizes;
a comer o resto de um qualquer dia
que por mais pormenorizada descrição
será incompreensível 
para qualquer outro.

Só resta o silêncio
e a lembrança dos olhos,
reflexos de um cúmplice
cansaço.



Sem comentários:

Enviar um comentário