29/11/24

"Saudade do Burro Branco" // Black Lips

 "Saudade do Burro Branco"


O burro branco já não aparece
e eu sinto a falta 
da sua lentidão 
na poeira seca, 
do som das patas
no chão 
como um aviso.

Fiquei bravo
quando o conheci
ferido
porque logo ali
o amei;
e o que amo
quero proteger
até 
com retroativos.

Ele não sabia o meu nome,
nem dos meus pensamentos
que, como ele, se arrastavam
tentando entender isso de viver
num misto de esperança e receio 
de não saber abrir mão
do trauma. 

O burro branco sabia de fome,
de suar até as vísceras saírem,
e eu, sem rumo,
com a falta do olhar simples
no fim da tarde quente.

Digo-me "teve de ser"
ouço os "é o que é":
uma bebida amarga
que bebo na esperança 
de não sentir a saudade
dessa alma quadrada
que nunca soube o meu nome
mas que sabia que a vida é dura
e que, numa qualquer encruzilhada,
homem e um burro
se  podem entender.

Não está;
e a saudade engole-me novamente,
como se eu fosse ele:
a contar cicatrizes;
a comer o resto de um qualquer dia
que por mais pormenorizada descrição
será incompreensível 
para qualquer outro.

Só resta o silêncio
e a lembrança dos olhos,
reflexos de um cúmplice
cansaço.



16/11/24

"O Professor" // Maurizio De Angelis // "ladainha do sagrado conformismo" // "O mendigo de abraços" // Pharmakon

 


"O Professor"

Cada sala um zoológico 
de olhares vazios,
em cada um 
o desejo 
de fuga,
e tu, 
com a cabeça cheia de cansaço,
tentando ensinar o impossível.

Eles não querem saber,
nem entender o que se diz, 
o que se sente,
só percepcionam o barulho das horas 
que caem no chão.
É assim que os querem.
Foi para isso que nos moldaram:
servis; complacentes. 
Ninguém se importa 
com a porra da equação.
Poetas estão mortos, 
artistas faliram,
e os alunos estão apenas 
à espera do fim 
da aula, 
do dia,
de tudo.

A velha luta está lá,
todos os dias,
de camisa suja,
a dizer coisas para ninguém ouvir:
que há mais que o conteúdo bolorento. 
Que urge aprender a ser.
E não querem. Não deixam.
Competir em vez de cooperar.
A vida das nove às cinco.
A meritocracia.
Os vinte cães a um osso.

Mas tu insistes,
insistes porque sabes que, no fundo,
alguém se vai lembrar,
alguém vai carregar aquela merda
por um minuto,
um mísero minuto.

E esses sessenta segundos, 
talvez sejam o suficiente
para um dia apagar um pouco
o absurdo da existência.
Porque, no fim,
o que sobra não é o que se ensinou,
mas o que, apesar de tudo,
sobreviveu
para sentirmos luz
por entre as ruínas.


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"ladainha do sagrado conformismo"

aconteceu 
assim
porque sou 
assim
produto acabado
&perfeito

foi 
assim
que deus
me fez



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"O mendigo de abraços"

coração
é única bússola 
que respeita

contudo
o caminho
revela-se 
intransitável

e uma rocha 
não indica 
norte algum