"o jardineiro"
27/10/24
"o jardineiro" // Trust // "cinema"
o jardineiro cuida e rega o jardim todos os dias. esteja doente ou rijo que nem um pêro e, pasme-se, faça chuva ou sol. é digno de se ver o jardineiro cumprir funções sobre enxurrada. ele próprio parece não saber explicar. "só sei cuidar do que gosto." -dizia "não gosto mais quando faz sol nem menos quando está encoberto!". há quem cultive para colher ou mesmo para esquecer e sossegar o coração do rebuliço dos dias. o jardineiro cultiva para ver crescer tanto rosa quanto mal-me-quer mas ama igualmente a erva daninha. recusa veemente cortar o mais pequeno rebento para ofertar a sagrados pés consciente que sagrada é a puta da vida quando não a tememos e o fruto dessa sincera devoção. o jardineiro aprendeu a abraçar o impossível. é esse o despretensioso segredo no sorriso do jardineiro.
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"cinema"
não é por ser teu
que sempre serei óbvio.
é na fricção com o desconhecido
que a vida se revela.
há entre céu e inferno imperceptíveis razões e, se em ti nasce sol, pode em mim florescer a tempestade sem que nenhum se ofusque.
12/10/24
"Tributos" // Bar Italia // "persistência #1-3"
"Tributos"
Tenho tanto
que fazer
e faço tanto.
Tenho tanto
p'ra cuidar
e cuido tanto.
Sei de gente
com talento
e de uma
intimidadora sensibilidade.
Gente para quem
a hora e o acto importa.
Gente do agora e já.
Em tal urgência
mudou locais,
corações
e deixou obra feita.
Sei de gente
que morreu de solidão
e para quem
toda a nossa preocupação
chegou tarde.
"persistência #1"
meu bem,
o impossível som
de mil bombas atómicas
é sussurro de criança
ao lado de tudo
que aprendemos
a calar
"persistência #2"
há vontade
de estar
onde não estou,
ir onde não vou
isso já
não tem jeito
há também
recorrência
nos "soluços"
ao longo do dia
única tradição
que respeito
"persistência #3"
se
sei ser
sem ser
sei também que,
na verdade,
somos mais ação
que intenção
assim,
talvez queira
mas não sou
assim,
talvez esconda
o que ficou
assim
te iludo
vazio de ti
cheio de tudo
30/09/24
Barreiro // “segredos” / “Mecânica” // Gallo
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“segredos”
ambiciono
sentir a urgência da vida
sem o peso da urgência da vida
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“Mecânica”
analógico é démodé.
as peças já não se fabricam.
faça-lhe o funeral
importe o novo modelo digital.
temos de mandar vir da Suíça.
vai custar um olho e um piparote!
Tem um problema
na engrenagem!
Tem um problema
na engrenagem!
Tem um problema
na engrenagem!
o material está obsoleto.
não cabe
na caixa
torácica.
16/09/24
"habitar" // Billie Holiday
"habitar"
talvez esta desadequação
seja mero deslocamento temporal
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14/09/24
Tortoise // "se quiseres" // Stereolab // "dezanove"
(a minha sanidade
nunca esteve tão
parva)
"se quiseres"
se quiseres falar
fala
se quiseres calar
cala
se quiseres gritar
grita
se quiseres avançar
acredita
se quiseres sair
sai
se quiseres ir
vai
"não poder"
é cortina
de preguiça
"feitio de merda"
é questão
de perspetiva
se quiseres
seremos
o que quiseres
se não quiseres
também
"Dezanove"
I
Envelheço com olhar imune ao rancor.
II
O passado foi promessa.Passo por ele apenas para cumprimentar.É aí que rego as flores.
III
Nos cadernos escrevo como uma criança:lápis de cera carregado de honestos erros.
IV
Piso o chão como ave noturna que nidifica.
V
Bonecos desmontados, não encontro coração.Ofereço a presença à promessa.
VI
A árvore abana e teima em não cair.Escondo o rosto mas ofereço a voz.
VII
O casal dissipa com a neblina matinal.
VIII
Mato a sede descendo o poço.Mato a fome sussurrando.
IX
Onde caio nascem rios.
X
Deixava as palavras ao sol até queimarem.Esmigalhando o silêncio.
XI
Esqueço como quem não quer.
XII
Se estou só e escrevo desafio o silêncio?Se algures alguém se inquieta estarei só?
XIII
Aconteceu-me o sol.Por isso escrevo.
XIV
De noite abraço o que ficou.
XV
Levanto corpo inerte e parto na esperança de encontrar.
XVI
Frio e vento perturbam o rio.
XVII
A luz tomba sem som.Com um movimento de mão afasto o medo.Acendo velas com o olhar.
XVIII
Aos que aguardam farei fontes.Onde caio nascem rios.Onde fico perco -me.Onde chego estou.
XIX
O corpo declara guerra.Fixo olhos até que tudo seja ontem. Aí faço paz.
I
Envelheço com olhar imune ao rancor.
II
O passado foi promessa.Passo por ele apenas para cumprimentar.É aí que rego as flores.
III
Nos cadernos escrevo como uma criança:lápis de cera carregado de honestos erros.
IV
Piso o chão como ave noturna que nidifica.
V
Bonecos desmontados, não encontro coração.Ofereço a presença à promessa.
VI
A árvore abana e teima em não cair.Escondo o rosto mas ofereço a voz.
VII
O casal dissipa com a neblina matinal.
VIII
Mato a sede descendo o poço.Mato a fome sussurrando.
IX
Onde caio nascem rios.
X
Deixava as palavras ao sol até queimarem.Esmigalhando o silêncio.
XI
Esqueço como quem não quer.
XII
Se estou só e escrevo desafio o silêncio?Se algures alguém se inquieta estarei só?
XIII
Aconteceu-me o sol.Por isso escrevo.
XIV
De noite abraço o que ficou.
XV
Levanto corpo inerte e parto na esperança de encontrar.
XVI
Frio e vento perturbam o rio.
XVII
A luz tomba sem som.Com um movimento de mão afasto o medo.Acendo velas com o olhar.
XVIII
Aos que aguardam farei fontes.Onde caio nascem rios.Onde fico perco -me.Onde chego estou.
XIX
O corpo declara guerra.Fixo olhos até que tudo seja ontem. Aí faço paz.
09/09/24
"mitologia e fé" // "viagens" // "Cavalheirismo"
"mitologia e fé"
ir, voltar, partir, chegar,
em circulos ou em linha recta,
a correr ou arrastando o passo.
há direcções que apenas se percepcionam à chegada.
o afecto não permite restrições nem cedências.
única mitologia que dá provas do divino.
testemunhei frequentemente a sua capacidade de banalizar o sobrenatural.
professo.
é ela
que faz
com que cada passo
que dou
desista
de ser o último.
antes de adormecer
não rezo;
após
despenteio.
fre
quen
te
mente.
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"Cavalheirismo"
nestes dias
desisti
de castelos, cavalos, princesas, demandas e banquetes.
na verdade embora idealismo e conduta possam enganar, nunca fui adepto.
estou na idade em que entro no mais mal frequentado dos bares na esperança de ser esfaqueado e acabo sempre por sair com novos amigos. está cada vez mais difícil ser vítima.
deixem passar a meia noite e testem.
dragões fazem as melhores conversas.
devoram apenas carne humana que tresande a medo.
a maioria gosta de trocar histórias e mostrar fotos dos filhos.
basta um pouco de jeito e até vos revelam o segredo do perpétuo fogo interior.
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"viagens"
sou
minha única
tradição
guardo memória
do impossível
defino
casa
por contraste
08/09/24
"Privatiza-mos" // "Assunto" // Lambchop
"privatiza-mos"
Esquivando
o assalto
à mão armada
da CUF
telefonei
para médico de família.
Esquivando
o assalto
à mão armada
da CUF
telefonei
para médico de família.
Não tinha
mas
lá se arranjou
qualquer coisa
Resumido dá isto:
Calminha!
É bom
que não estejam
a morrer!
É que
a morrer
sai mais caro!
"Assunto"
Esta dificuldade
em distinguir
relatos
e factos,
esta mania
de valorizar
tanto
palavras
quanto actos ...
que saudades
de apenas
gostar
de quem
gosta
de mim.
E agora?
Há cura Sr doutor?
É grave?
03/09/24
Guy Clark // Sunn 0))) // "Posse"
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---"""---
"Posse"
se frequentemente
me sinto idiota
é por,
nesta idade
e sabendo o que sei,
acreditar numa derradeira fuga
para deixar de fugir.
num olhar de pertença
não possessivo,
não meramente sexual,
não platónico nem ingénuo.
um sossego, um sussurro, um segredo.
um lugar
de confronto e de conforto
onde a pertença
liberta.
uma promessa
de cúmplice
reinvenção.
um recorrente diálogo
transparente, cru e visceral.
uma loucura comum.
partilhada.
e também o silêncio mútuo
que traduz
a certeza
de que
aquela pessoa
ali,
que retribui o olhar,
é a nossa pessoa.
tal requer não só a conjunção de enúmeros micro e macrofactores mas também de algo tão volátil como a vontade humana.
é, como admiti,
idiota.
mas é também certo
que este mundo
é de quem
se atreve.
Eu atrevo-me
a ser idiota.
"teimoso" // Riz Ortolani // "Ses"
"teimoso"
há em mim
fé numa falha
no tempo
há em mim
fé no infinito
momento
há em mim
instinto preconceituoso
que renega banal altar
há em mim
algo teimoso
que me impele a errar
há em mim
afecto suficiente
para me curar
há em mim
e acredito
algures
fora de mim
haver
há
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"Ses"
Se há meia há pé
Se arrisco jogo
Se há falta procura
Se há fumo há fogo
Se perdeste encontra
Se desata ata
Se abraça fica
Se há saudade mata
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12/08/24
"como em crianças" //Läuten der Seele // "beijos"
"como em crianças"
confias
que não te querem
fazer cair
e que quando cais
terás ajuda
para levantar
e isso,
apesar de filosofia barata,
seria bom
"beijos"
entre perfeição e excelência
recuso competir
entre silêncio e cedência
recuso jogar
entre procura e fuga
recuso partir
entre beijo e abraço
recuso banalizar
entre o que é e o que tem de ser
chuto a bola para o quintal do vizinho
acabo um jogo
sugerindo outro
mesmo que ninguém
o consiga percepcionar
ninguém te conseguiria
acariciar cabelo
mais carinhosamente
na recusa
também aceito
funâmbulo
da linha que
não existe
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