"ano novo"
05/01/25
"ano novo" // Beth Gibbons
ao abandonar o campo
no regresso à cidade,
onde os rostos são fechados
e cada esquina fria,
as folhas secas
ainda ecoam
trouxe
um pouco mais poeira
nos meus sapatos.
mas aqui estou.
o campo,
agora distante,
não me aguarda,
e a solidão
persegue
como uma sombra
agora
com mais pressa.
aqui
o vento
teima em trazer
algo diferente
talvez teu,
talvez meu.
quem sabe?
de tanto
tentar
responder
apenas encontrei
mais um pouco
das saudades que me tenho
assim,
de cada soluço
fiz canção
---"""---
29/11/24
"Saudade do Burro Branco" // Black Lips
"Saudade do Burro Branco"
O burro branco já não aparece
e eu sinto a falta
da sua lentidão
na poeira seca,
do som das patas
no chão
no chão
como um aviso.
Fiquei bravo
Fiquei bravo
quando o conheci
ferido
porque logo ali
o amei;
e o que amo
quero proteger
até
com retroativos.
Ele não sabia o meu nome,
nem dos meus pensamentos
que, como ele, se arrastavam
tentando entender isso de viver
nem dos meus pensamentos
que, como ele, se arrastavam
tentando entender isso de viver
num misto de esperança e receio
de não saber abrir mão
do trauma.
O burro branco sabia de fome,
de suar até as vísceras saírem,
e eu, sem rumo,
com a falta do olhar simples
no fim da tarde quente.
O burro branco sabia de fome,
de suar até as vísceras saírem,
e eu, sem rumo,
com a falta do olhar simples
no fim da tarde quente.
Digo-me "teve de ser"
ouço os "é o que é":
uma bebida amarga
uma bebida amarga
que bebo na esperança
de não sentir a saudade
dessa alma quadrada
que nunca soube o meu nome
mas que sabia que a vida é dura
e que, numa qualquer encruzilhada,
dessa alma quadrada
que nunca soube o meu nome
mas que sabia que a vida é dura
e que, numa qualquer encruzilhada,
homem e um burro
se podem entender.
Não está;
e a saudade engole-me novamente,
como se eu fosse ele:
Não está;
e a saudade engole-me novamente,
como se eu fosse ele:
a contar cicatrizes;
a comer o resto de um qualquer dia
que por mais pormenorizada descrição
Só resta o silêncio
e a lembrança dos olhos,
reflexos de um cúmplice
a comer o resto de um qualquer dia
que por mais pormenorizada descrição
será incompreensível
para qualquer outro.
Só resta o silêncio
e a lembrança dos olhos,
reflexos de um cúmplice
cansaço.
16/11/24
"O Professor" // Maurizio De Angelis // "ladainha do sagrado conformismo" // "O mendigo de abraços" // Pharmakon
"O Professor"
Cada sala um zoológico
de olhares vazios,
em cada um
em cada um
o desejo
de fuga,
e tu,
e tu,
com a cabeça cheia de cansaço,
tentando ensinar o impossível.
tentando ensinar o impossível.
Eles não querem saber,
nem entender o que se diz,
o que se sente,
só percepcionam o barulho das horas
só percepcionam o barulho das horas
que caem no chão.
É assim que os querem.
Foi para isso que nos moldaram:
servis; complacentes.
Ninguém se importa
com a porra da equação.
Poetas estão mortos,
artistas faliram,
e os alunos estão apenas
e os alunos estão apenas
à espera do fim
da aula,
do dia,
de tudo.
A velha luta está lá,
todos os dias,
de camisa suja,
a dizer coisas para ninguém ouvir:
que há mais que o conteúdo bolorento.
Que urge aprender a ser.
E não querem. Não deixam.
Competir em vez de cooperar.
A vida das nove às cinco.
A meritocracia.
Os vinte cães a um osso.
Mas tu insistes,
insistes porque sabes que, no fundo,
alguém se vai lembrar,
alguém vai carregar aquela merda
por um minuto,
um mísero minuto.
E esses sessenta segundos,
insistes porque sabes que, no fundo,
alguém se vai lembrar,
alguém vai carregar aquela merda
por um minuto,
um mísero minuto.
E esses sessenta segundos,
talvez sejam o suficiente
para um dia apagar um pouco
o absurdo da existência.
Porque, no fim,
o que sobra não é o que se ensinou,
mas o que, apesar de tudo,
para um dia apagar um pouco
o absurdo da existência.
Porque, no fim,
o que sobra não é o que se ensinou,
mas o que, apesar de tudo,
sobreviveu
para sentirmos luz
por entre as ruínas.
por entre as ruínas.
---"""---
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"ladainha do sagrado conformismo"
aconteceu
assim
porque sou
porque sou
assim
produto acabado
&perfeito
produto acabado
&perfeito
foi
assim
que deus
me fez
que deus
me fez
---"""---
"O mendigo de abraços"
coração
é única bússola
que respeita
contudo
o caminho
revela-se
intransitável
e uma rocha
não indica
norte algum
27/10/24
"o jardineiro" // Trust // "cinema"
"o jardineiro"
o jardineiro cuida e rega o jardim todos os dias. esteja doente ou rijo que nem um pêro e, pasme-se, faça chuva ou sol. é digno de se ver o jardineiro cumprir funções sobre enxurrada. ele próprio parece não saber explicar. "só sei cuidar do que gosto." -dizia "não gosto mais quando faz sol nem menos quando está encoberto!". há quem cultive para colher ou mesmo para esquecer e sossegar o coração do rebuliço dos dias. o jardineiro cultiva para ver crescer tanto rosa quanto mal-me-quer mas ama igualmente a erva daninha. recusa veemente cortar o mais pequeno rebento para ofertar a sagrados pés consciente que sagrada é a puta da vida quando não a tememos e o fruto dessa sincera devoção. o jardineiro aprendeu a abraçar o impossível. é esse o despretensioso segredo no sorriso do jardineiro.
---"""---
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"cinema"
não é por ser teu
que sempre serei óbvio.
é na fricção com o desconhecido
que a vida se revela.
há entre céu e inferno imperceptíveis razões e, se em ti nasce sol, pode em mim florescer a tempestade sem que nenhum se ofusque.
12/10/24
"Tributos" // Bar Italia // "persistência #1-3"
"Tributos"
Tenho tanto
que fazer
e faço tanto.
Tenho tanto
p'ra cuidar
e cuido tanto.
Sei de gente
com talento
e de uma
intimidadora sensibilidade.
Gente para quem
a hora e o acto importa.
Gente do agora e já.
Em tal urgência
mudou locais,
corações
e deixou obra feita.
Sei de gente
que morreu de solidão
e para quem
toda a nossa preocupação
chegou tarde.
"persistência #1"
meu bem,
o impossível som
de mil bombas atómicas
é sussurro de criança
ao lado de tudo
que aprendemos
a calar
"persistência #2"
há vontade
de estar
onde não estou,
ir onde não vou
isso já
não tem jeito
há também
recorrência
nos "soluços"
ao longo do dia
única tradição
que respeito
"persistência #3"
se
sei ser
sem ser
sei também que,
na verdade,
somos mais ação
que intenção
assim,
talvez queira
mas não sou
assim,
talvez esconda
o que ficou
assim
te iludo
vazio de ti
cheio de tudo
30/09/24
Barreiro // “segredos” / “Mecânica” // Gallo
---"""---
“segredos”
ambiciono
sentir a urgência da vida
sem o peso da urgência da vida
---"""---
“Mecânica”
analógico é démodé.
as peças já não se fabricam.
faça-lhe o funeral
importe o novo modelo digital.
temos de mandar vir da Suíça.
vai custar um olho e um piparote!
Tem um problema
na engrenagem!
Tem um problema
na engrenagem!
Tem um problema
na engrenagem!
o material está obsoleto.
não cabe
na caixa
torácica.
16/09/24
"habitar" // Billie Holiday
"habitar"
talvez esta desadequação
seja mero deslocamento temporal
---"""---
14/09/24
Tortoise // "se quiseres" // Stereolab // "dezanove"
(a minha sanidade
nunca esteve tão
parva)
"se quiseres"
se quiseres falar
fala
se quiseres calar
cala
se quiseres gritar
grita
se quiseres avançar
acredita
se quiseres sair
sai
se quiseres ir
vai
"não poder"
é cortina
de preguiça
"feitio de merda"
é questão
de perspetiva
se quiseres
seremos
o que quiseres
se não quiseres
também
"Dezanove"
I
Envelheço com olhar imune ao rancor.
II
O passado foi promessa.Passo por ele apenas para cumprimentar.É aí que rego as flores.
III
Nos cadernos escrevo como uma criança:lápis de cera carregado de honestos erros.
IV
Piso o chão como ave noturna que nidifica.
V
Bonecos desmontados, não encontro coração.Ofereço a presença à promessa.
VI
A árvore abana e teima em não cair.Escondo o rosto mas ofereço a voz.
VII
O casal dissipa com a neblina matinal.
VIII
Mato a sede descendo o poço.Mato a fome sussurrando.
IX
Onde caio nascem rios.
X
Deixava as palavras ao sol até queimarem.Esmigalhando o silêncio.
XI
Esqueço como quem não quer.
XII
Se estou só e escrevo desafio o silêncio?Se algures alguém se inquieta estarei só?
XIII
Aconteceu-me o sol.Por isso escrevo.
XIV
De noite abraço o que ficou.
XV
Levanto corpo inerte e parto na esperança de encontrar.
XVI
Frio e vento perturbam o rio.
XVII
A luz tomba sem som.Com um movimento de mão afasto o medo.Acendo velas com o olhar.
XVIII
Aos que aguardam farei fontes.Onde caio nascem rios.Onde fico perco -me.Onde chego estou.
XIX
O corpo declara guerra.Fixo olhos até que tudo seja ontem. Aí faço paz.
I
Envelheço com olhar imune ao rancor.
II
O passado foi promessa.Passo por ele apenas para cumprimentar.É aí que rego as flores.
III
Nos cadernos escrevo como uma criança:lápis de cera carregado de honestos erros.
IV
Piso o chão como ave noturna que nidifica.
V
Bonecos desmontados, não encontro coração.Ofereço a presença à promessa.
VI
A árvore abana e teima em não cair.Escondo o rosto mas ofereço a voz.
VII
O casal dissipa com a neblina matinal.
VIII
Mato a sede descendo o poço.Mato a fome sussurrando.
IX
Onde caio nascem rios.
X
Deixava as palavras ao sol até queimarem.Esmigalhando o silêncio.
XI
Esqueço como quem não quer.
XII
Se estou só e escrevo desafio o silêncio?Se algures alguém se inquieta estarei só?
XIII
Aconteceu-me o sol.Por isso escrevo.
XIV
De noite abraço o que ficou.
XV
Levanto corpo inerte e parto na esperança de encontrar.
XVI
Frio e vento perturbam o rio.
XVII
A luz tomba sem som.Com um movimento de mão afasto o medo.Acendo velas com o olhar.
XVIII
Aos que aguardam farei fontes.Onde caio nascem rios.Onde fico perco -me.Onde chego estou.
XIX
O corpo declara guerra.Fixo olhos até que tudo seja ontem. Aí faço paz.
09/09/24
"mitologia e fé" // "viagens" // "Cavalheirismo"
"mitologia e fé"
ir, voltar, partir, chegar,
em circulos ou em linha recta,
a correr ou arrastando o passo.
há direcções que apenas se percepcionam à chegada.
o afecto não permite restrições nem cedências.
única mitologia que dá provas do divino.
testemunhei frequentemente a sua capacidade de banalizar o sobrenatural.
professo.
é ela
que faz
com que cada passo
que dou
desista
de ser o último.
antes de adormecer
não rezo;
após
despenteio.
fre
quen
te
mente.
---"""---
"Cavalheirismo"
nestes dias
desisti
de castelos, cavalos, princesas, demandas e banquetes.
na verdade embora idealismo e conduta possam enganar, nunca fui adepto.
estou na idade em que entro no mais mal frequentado dos bares na esperança de ser esfaqueado e acabo sempre por sair com novos amigos. está cada vez mais difícil ser vítima.
deixem passar a meia noite e testem.
dragões fazem as melhores conversas.
devoram apenas carne humana que tresande a medo.
a maioria gosta de trocar histórias e mostrar fotos dos filhos.
basta um pouco de jeito e até vos revelam o segredo do perpétuo fogo interior.
---"""---
"viagens"
sou
minha única
tradição
guardo memória
do impossível
defino
casa
por contraste
08/09/24
"Privatiza-mos" // "Assunto" // Lambchop
"privatiza-mos"
Esquivando
o assalto
à mão armada
da CUF
telefonei
para médico de família.
Esquivando
o assalto
à mão armada
da CUF
telefonei
para médico de família.
Não tinha
mas
lá se arranjou
qualquer coisa
Resumido dá isto:
Calminha!
É bom
que não estejam
a morrer!
É que
a morrer
sai mais caro!
"Assunto"
Esta dificuldade
em distinguir
relatos
e factos,
esta mania
de valorizar
tanto
palavras
quanto actos ...
que saudades
de apenas
gostar
de quem
gosta
de mim.
E agora?
Há cura Sr doutor?
É grave?
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